Sentimentos Versus Deveres Organizacionais – Cid Miranda

Copyright © 2005 Cid Miranda

Atualizado em 29/10/2020

  • Do que se trata a pregação das Testemunhas de Jeová e que sentimentos ela produz?

As Testemunhas de Jeová se auto-elegem como os “hodiernos seguidores de Cristo na terra”, os únicos a ostentarem “o sinal identificador dos verdadeiros cristãos, o amor.” As Testemunhas alegam mostrar amor ao próximo do único jeito genuinamente bíblico ao dar destaque a uma pregação que anuncia Cristo qual governante do Reino de Deus entronizado nos céus em 1914. Essa “pregação” ocorre segundo o entendimento do Corpo Governante delas sediado nos EUA. O tema central da Bíblia para elas, à guisa de exemplo, não é a vinda e as realizações do Messias mas um governo teocrático a ser em breve instalado na terra para o bem de todos os humanos.

Falando sobre isso com as pessoas de porta em porta, afirmam que todos os outros assuntos desse mundo devem descansar nas mãos de Deus pois só Ele resolverá os problemas da raça humana de uma vez por todas. Pregar isso pode parecer bíblico mas o problema é que as Testemunhas vão mais além e se apegam a interpretações muito particulares da Bíblia. Uma doutrina central ou fundamental delas, por exemplo, é a de que Cristo foi entronizado em 1914, inspecionou a obra delas em 1918, aprovou sua organização em 1919 e os líderes dela, ungidos em Warwick, EUA, foram então designados como “modernos porta-vozes de Deus”, “o canal de comunicação de Jeová” com a humanidade, etc. 

O pior é que, por crerem e falarem disso como “bíblico”, elas acham que automaticamente se tornam uma organização de “pregadores” aprovados. Na verdade, são homens que criaram ensinos de natureza inconstante e errante e certos “entendimentos bíblicos” deles praticamente anulam o amor cristão que poderia ser evidenciado em vários outros campos, como por exemplo, em obras de assistência social aos próprios membros da organização Torre de Vigia das Testemunhas de Jeová.

Outras religiões da “cristandade” (termo de conotação negativa para as TJ) investem em áreas sociais e, nesse sentido, lembram, embora de forma muito tímida, o que se recomenda em Atos 2:44-47. Nem mesmo para as próprias Testemunhas carentes a organização que tanto fala de amor, providenciou arranjos amorosos como o de creches e escolas, hospitais, asilos para idosos, etc. A organização nunca se preocupou em se estruturar para isso porque enfatiza os deveres organizacionais, sua “obra de pregação” e, é claro, a expansão dela visando aos supostos “benefícios espirituais, eternos” das pessoas. No entanto, mostrar sentimentos de amor nessa direção solidária é também dever cristão, e a Bíblia em Tiago 2:14-17 revela que esse é um assunto muito sério, que deveria ser cuidado em condições “normais”, e não apenas quando confrontados com catástrofes, tragédias, etc, conforme orientação da organização.

  • Deveres Organizacionais X Sentimentos

Outro aspecto: o amor, a compaixão, a generosidade, a empatia, etc, não são suficientes, nem fatores decisivos, por exemplo, para que um homem seja designado “Servo Ministerial” (diácono) ou “ancião” (pastor) do rebanho TJ. “Para ser designado, o cristão precisa fazer pelo menos dez horas mensais no relatório de campo. Ele servirá como exemplo para o rebanho e, portanto, deve mostrar serviço (zelo) à organização pregadora”, disse-me certa vez um superintendente de circuito. Falou isso mas não se lembrou de que a Bíblia fala de outros dons, capacidades, habilidades e talentos diferentes, dentro de uma mesma congregação. (Efésios 4:11,12)

  • O Resultado dos “Deveres Cristãos” das Testemunhas de Jeová

Um processo de desumanização automaticamente se instala sutilmente nessa estrutura organizacional; “cristãos” oprimem uns aos outros com cobranças de “horas de serviço sagrado na pregação”, termômetro que mede a temperatura da fé da irmandade TJ, e o quanto serão aceitos, queridos, apreciados ou valorizados no “asséptico” meio-ambiente “teocrático”. Se uma Testemunha não mantiver constantes boas “horas de campo” em seu relatório mensal, os sentimentos citados no parágrafo anterior (amor, compaixão, bondade, etc) perdem a importância e tal pessoa é tratada como “não teocrática”, “fraca na fé”, “associação duvidosa”. Isso constantemente eleva bastante a temperatura ambiente das congregações. A pressão alta cria vários transtornos de personalidade que se propagam como metástase em um sistema viciado “em horas” e “demonstrações de apreço/zelo”, o que geralmente produz anomalias generalizadas nos sentimentos humanos em quase toda Testemunha dita “teocrática” ou “zelosa”, na verdade, simplesmente fanática. Isso acontece de modo muitas vezes incurável, intratável, irreversível.

Qualidades e sentimentos como amor, bondade, altruísmo, etc, são produzidos em temperatura baixa, frutos benéficos de cabeças serenas, felizes, sensatas, moderadas, não autoritárias, não frias e arrogantes pois sentimentos positivos não se dão bem no excesso de calor das cobranças, tensões, pressões, intimidações, confusões, fofocas, medos e até terror psicológico, algo do tipo “estar sempre desagradando a Deus, nunca se estando à altura do nome Dele”. Temperatura quente, fora de controle, produz pratos de difícil digestão, e quem já conviveu com “irmãos teocráticos” – que supostamente deveriam ser os mais amorosos e compreensíveis – sabe quão amargo é o sabor das “cobranças” advindas dos infindáveis deveres organizacionais.

Contraste tudo que você está lendo com as palavras de Jesus em Mateus 11:28-30 (Versão Ferreira de Almeida):

28. Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. 29. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. 30. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.

Os mais “maduros” ou “antigos” no sistema, e certamente os mais “cansados” dos inúmeros deveres organizacionais e “atividades teocráticas”, desfilam cada vez mais sem graça pelas galerias das suspeitas quanto aos motivos desse “jogo de culpas que faz tanto mal”; quanto aos motivos de tantos legalismos; quanto aos motivos de, vez após vez, terem de dar “satisfações” de suas vidas a homens, em vez de individualmente apenas a Deus, conforme a Bíblia garante que ocorrerá no futuro, no dia do “acerto de contas”. (Romanos 14:10-12)

A esmagadora maioria TJ sente que tudo que importa ali dentro é ter uma “condição aprovada”, absolutamente nos moldes organizacionais. Os sentimentos devem se ajustar aos incontáveis deveres organizacionais, e pronto. A devoção à obra religiosa da “organização que leva o nome de Deus”, é tudo que interessa pois essa é a única “forma de adoração” que as Testemunhas acham que agrada ao Criador. Um cunhado meu, ancião “zeloso”, certa vez comentou diante de várias Testemunhas, numa fazenda onde estávamos passando um feriado prolongado: “quando um varão de 30 anos, TJ há pelo menos 10, ainda não tem um privilégio como o de ‘servo ministerial’ ou o de ‘ancião’, é quase certo que ele tenha um problema; pode haver algo de muito errado com ele…”

O que o leitor lerá a seguir é no mínimo intrigante, e ilustra muito bem esse tema. Espera-se que a Testemunha de Jeová que estiver lendo esse artigo, analise à base da Bíblia o que realmente ocorre, e o que de fato Jeová Deus requer dos corações e das atitudes de um cristão.

  • Trecho do livro de Raymond Victor Franz, Em Busca da Liberdade Cristã, (em inglês) páginas 248-250, capítulo 8:

A administração da sede em Brooklyn tem algo denominado “Departamento de Serviço.” Esse departamento supervisiona a atividade nos EUA de todos os representantes viajantes (superintendentes de circuito e distrito) e de todos os representantes congregacionais (anciãos e servos ministeriais). Perguntas sobre procedimentos e política recebidas destas fontes são freqüentemente cuidadas pelo Departamento de Serviço, cujos membros encarregados dividem entre si diversos “setores” do país. Com a crescente ênfase na desassociação, particularmente de 1950 em diante, começaram a chegar perguntas de suptds. congregacionais e viajantes, pedindo definições mais explícitas sobre condutas consideradas pecaminosas, principalmente no campo da imoralidade sexual, mas também com relação a outras áreas. Os superintendentes congregacionais queriam saber qual era a “política” da Sociedade em tais casos e a ação que a congregação deveria tomar.

Os questionamentos desses homens chegavam, portanto, à sede da Torre de Vigia em Brooklyn. Em muitos casos, o “responsável pelo setor” do “Departamento de Serviço” não se sentia qualificado para fornecer a definição solicitada ou assentar em termos específicos, exatamente o que ou não constituía “razões para desassociação” em determinada circunstância. O procedimento padrão em tais casos se resume numa expressão usada mui freqüentemente: “envie-a ao Freddy”.

“Freddy” significava Fred Franz, na época vice-presidente da Sociedade Torre de Vigia e reconhecidamente, para a organização, o principal escritor e erudito bíblico. A pergunta era enviada a ele e ele fornecia a definição ou aplicação bíblica sobre o assunto, geralmente na forma de “memorando”. Visto que na maioria dos casos, as Escrituras por si mesmas não forneciam insumos específicos sobre as questões, muitas das respostas consistiam em raciocínios interpretativos, o raciocínio do então vice-presidente. Suas respostas eram, é claro, submetidas à aprovação do presidente, Nathan Knorr, ou a algum veto dele, coisa muito rara de ocorrer. Indubitavelmente, a maneira em que o Departamento de Serviço apresentava os assuntos e as observações deles ao submeterem as perguntas, influenciavam as respostas que recebiam, e elas representavam de fato uma boa quantidade das políticas que passaram a se desenvolver. O vice-presidente não tinha qualquer conhecimento de primeira-mão sobre quaisquer que fossem as circunstâncias envolvidas nos casos. Além disso, ele não mantivera qualquer contato com as pessoas cujas vidas seriam afetadas pelas decisões que ele apresentava.

Eu não duvido da sinceridade dos esforços de Fred Franz nesse respeito. Contudo, o resultado, creio eu, ilustra quão errado é dar a qualquer ser humano, não a tarefa de aconselhar ou orientar, mas dele realmente decidir assuntos que deveriam corretamente caber às consciências dos indivíduos pessoalmente envolvidos. Não obstante à sinceridade do vice-presidente, é fato consumado que, por ele levar uma vida um tanto resumida aos prédios das filiais desde os seus vinte e poucos anos, isso o isolou da vida que levavam pessoas comuns “lá de fora” (termo frequentemente usado pelos membros da sede da Torre de Vigia referindo-se à vida fora de sua “comunidade seleta”). As coisas experimentadas por aqueles que se engajavam no emprego secular, que tinham de enfrentar os problemas e dificuldades do cotidiano como é comum as pessoas enfrentarem, nada disso tinha a ver com a experiência de vida dele. De meu próprio convívio pessoal com ele por longos anos, ficou bastante evidente que ele era bastante indiferente, ou talvez a expressão pudesse ser “apartado” da realidade de vida que levava uma pessoa comum. De modo algum ele era um eremita, pois aceitava convites ocasionais para refeições e fins-de-semana nos lares de pessoas, mas ele era sempre o “convidado especial”, alguém considerado como diferente das pessoas comuns. As conversas raramente (para não dizer nunca) tinham a ver com aspectos mais seculares das ocupações humanas. Recordo um verão no final dos anos 40 ou começo dos anos 50 quando ele se encontrava na casa de nossa família em Kentucky (e eu também estava ali em férias de Porto Rico), e ele comentou sobre si e Nathan Knorr: “o irmão Knorr é um homem prático. Eu sou acadêmico.”

Tenho certeza de que ele não era uma pessoa sem sentimentos, embora em sua visão com respeito aos problemas da vida humana ele parecesse de alguma forma distante, às vezes quase fatalista a cerca de dificuldades e até de tragédias.

Para mim, um exemplo disso me foi bastante impactante. Nos anos 70, um sobrinho meu contraíra uma repentina infecção no pâncreas que roubou sua vida em apenas 3 dias. Tinha somente 34 anos. Deixara para trás uma jovem e amável esposa e duas filhinhas. No funeral ao qual minha esposa e eu assistimos, o local estava cheio. À medida que o orador convidado pela Sociedade, seu vice-presidente (tio avô do falecido), caminhava em direção à tribuna, pausou, e então com voz alta, quase retumbante, exclamou: “Quão maravilhoso é estar vivo!” Após essa exclamação introdutória, efetiva e dramaticamente ele discursou por vários minutos, sobre o significado das palavras de Eclesiastes 7:1-4. Meu sobrinho não foi mencionado uma única vez. Então, após cerca de 10 minutos, referindo-se à expressão “melhor ir à casa de luto”, o orador exclamou, “eis a razão pela qual todos nós, mais cedo ou mais tarde, terminaremos desse jeito!”, e sem mesmo mover-se de lado, ele apontou para o caixão em que repousava o corpo de meu sobrinho. O discurso prosseguiu com comentário adicional sobre a passagem bíblica mas sem qualquer menção ao falecido até o final quando fez a citação padrão dos nomes dos parentes próximos do morto e o motivo pelo qual houve necessidade de tal reunião.

Senti um tipo de raiva ardente – não a respeito de meu tio, pois sincera e honestamente creio que ele pensava ser esta a melhor forma de lidar com essa situação, o melhor modo de combater as sensações naturais de aflição e de perda. O que sentia queimar por dentro era a atitude organizacional que fazia com que uma pessoa se sentisse plenamente justificada a falar de um modo que essencialmente transformava o corpo sem vida de uma pessoa em veículo ou plataforma sobre a qual discursar, um discurso que expunha doutrinas organizacionais, mas que simplesmente não fazia menção alguma da tristeza da perda de uma pessoa cuja vida havia terminado, como se o fato de ignorar isso pudesse suavizar a dor da perda. Fiquei a dizer a mim mesmo: “James merece algo melhor que isso – certamente o texto ‘um nome é melhor do que bom óleo’ requer que se fale sobre o que ele mesmo fez em vida. Certamente há algo que pode se aprender da vida dele, algo sobre ele que possa ser dito para encorajar a nós, os vivos”.22

Novamente, não penso que meu tio não tivesse os sentimentos que eu tinha ou que ele era falho em sua capacidade de sentir dor e compaixão. Creio que ele simplesmente refletia um treinamento de uma vida orientada para não expressar sentimentos sobre quaisquer outras coisas senão os “interesses teocráticos”.23

Comentário de Raymond Franz, ao pé da página:

22 Pediram-me que fizesse a oração após o discurso fúnebre e recordo que me senti engasgado ao orar:

“Um inimigo veio ao nosso meio e nos roubou um ente amado. Uma esposa perdeu seu marido. Criancinhas perderam o pai. Um pai e uma mãe perderam seu filho. E todos nós perdemos um amigo.”

Só então pude ouvir, pela primeira vez, algumas expressões de dor entre os presentes, e sinceramente me senti bem com aqueles sons. Tentei falar de algumas coisas boas sobre o falecido, coisas que valessem a pena imitarmos, pois pensei: “certamente essa é ocasião para expressarmos nosso apreço pelas qualidades dele. Devemos isso a ele, à sua memória.”

23 Ocorreu nos anos 80, quando (Fred Franz) considerava o texto matinal para a “família de Betel”. Ele enfatizava a importância do trabalho que os membros da sede faziam, e passou a relatar que em 1939, fora avisado por sua mãe que seu pai falecera, e que ele informou então a ela que ele não poderia comparecer ao funeral devido ao trabalho árduo em Betel. Sua mãe desligou enraivecida e telefonou para o Juiz Rutherford e, acrescentou meu tio, o “Juiz” ordenou-lhe então que ele fosse ao funeral.

Isso foi dito sem nenhum tipo de constrangimento, mas para ilustrar a importância que ele dava às designações dele em Betel, a “casa de Deus”. (Compare com Mateus 15:3-5)