Copyright © 2004 Cid Miranda
Atualizado em 30/10/2020
Meu nome é Haideê Blitzkow. Tenho 65 anos (quando escrevo em 2004) e fui Testemunha de Jeová durante 42 anos de minha vida.
Foto de 2020
Tudo começou com a informação de que Deus tinha um nome pessoal. Abracei a religião das Testemunhas de Jeová como a única e verdadeira, aprovada por esse Deus. Em tudo, a religião se dizia associada a Ele. Assim, eu não sabia dos conflitos conjugais e familiares que estavam por vir…
Os primeiros anos foram críticos: não festejar aniversários, Natal e Páscoa, e um esposo que nunca aceitou a situação religiosa pois tínhamos 3 filhos e eles não puderam ter o que outras crianças naturalmente tinham. Também, havia dilemas em relação a vacinas, transplantes de órgãos, e o pior, transfusões de sangue. Minha vida se tornou um martírio. Havia o medo de que meus filhos, numa doença, viessem a precisar de sangue pois sabia que meu marido iria autorizar. Só diminuí esse sofrimento quando eles atingiram a maioridade. Mas sofria por outras coisas que a organização ensinava que eu não concordava, como fazer relatórios mensais com horas e outras informações de natureza pessoal que ela estipulava que prestássemos conta com ela. Mas ainda assim, esforcei-me para ser uma Testemunha de Jeová levando os filhos às reuniões e fazendo estudos bíblicos com eles. Dos 3 filhos (2 meninos, 1 menina), somente a filha permaneceu na organização.
Em 1967, vi uma esperança maravilhosa. A Sociedade começou a falar algumas coisas sobre o ano de 1975. Todos no pequeno Salão do Reino só falavam que o fim estava muito, muito perto. Mas o ano de 75 veio e se foi, e nada aconteceu. Não sofri muito. Talvez somente mais 10 anos e tudo acabaria. Eu não me dava conta de que, daquele momento em diante, começariam a nascer dúvidas em minha mente. Tudo o que a organização publicava, eu lia na medida do possível, a fim de estar a par dos acontecimentos, já que “só ela tinha a verdade” de Deus. Mas quando começaram a surgir mudanças em alguns ensinamentos, as dúvidas aumentaram. Eu pouco comentava pois sabia o perigo que corria. Então, desanimava e por duas vezes, afastei-me da organização mas continuava lendo as publicações dela. Quando alguém me visitava e dizia: “por que você não volta para o Salão do Reino? É muito triste morrer fora da organização”, minha resposta era: “quem tem de mudar sou eu!” Afinal de contas, não ousava duvidar da “Sociedade” e seu “Corpo Governante orientado pelo espírito santo de Deus”.
Com o lançamento do livro “Adore o Único Deus Verdadeiro”, comparei com o antigo (“Unidos na Adoração”) para ver se havia mudanças. Qual foi minha surpresa quando descobri que três capítulos tinham sido removidos! E quando vi que o capítulo a respeito do sangue não mais existia, gelei, não de surpresa, mas de raiva. Quanto eu havia sofrido por causa disto!
Tomei então uma atitude: comecei a pesquisar outras mudanças. Peguei várias publicações e o livro e fui buscar respostas. Falei com um ancião muito amigo meu e contei a ele tudo o que me incomodava. Ele só escutou e, estranhamente, passados alguns dias, ele voltou a me procurar simplesmente para me avisar que eu… “teria uma reunião com uma Comissão”.
Algum tempo atrás, uma irmã que há anos está afastada da organização falou-me de coisas que ela havia lido na internet. Então, começamos a pesquisar vários sites, e vimos o livro de Raymond Franz, “Crise de Consciência”. Comprei o livro e deixei com a irmã, que o leu em 3 dias e ficou impressionada com as descobertas jamais imaginadas. Depois foi minha vez. Após lê-lo, fiquei muito feliz porque agora sabia que não estava errada. Pena que estávamos mais de 20 anos atrasadas! Eu não tinha lido o livro todo mas foi suficiente para enfrentar a comissão formada por três anciãos. Conversamos durante duas horas e meia.
Falei com segurança e não dei chance para usarem o livro “secreto” (KS) todo o tempo. Usamos mais a Palavra de Deus e ao término da reunião, o ancião com mais idade e tempo na organização me elogiou por eu ler muito e perceber as coisas. Senti que ele tinha as próprias dúvidas. Então eles me pediram para não falar nada com outros irmãos. Eu não gostei do que me mandaram fazer pois vivemos num país com liberdade de expressão. Eu já tinha falado sobre muitas coisas com outras pessoas. Ora, não aprendi isso no serviço de campo? Falei sobre as inverdades que a “Sociedade” me ensinara e que repassei a outros. Mostrei que nossa fé infelizmente sempre foi medida por “relatórios de serviço”, e, enquanto as qualidades cristãs não recebiam tanta importância, o trabalho com “colocação de literatura” TJ, sim.
Ao voltar para casa depois da reunião, eu já tinha tomado minha decisão: pediria a dissociação. Telefonei para um ancião da minha confiança e pedi para ele vir até minha casa. Eu já estava com a carta pronta, e com firma reconhecida.
Quando ele chegou, pensou que eu estava arrependida mas aproveitei a ocasião e falei tanto quanto estava sabendo. Não disse que estava lendo o livro de Raymond Franz. Ele percebeu que eu tinha provas de tudo que falava. Foi gentil e educado e antes de se retirar, olhou para mim e disse: “a irmã é muito corajosa”. Respondi: “Eu sei. Sou a formiga na frente de uma locomotiva. Mas não preciso mais temer ensinos de homens que se dizem ‘guiados pelo Espírito Santo’, quando não o são.”
Em 18 de agosto de 2004, finalmente libertei-me dos grilhões daquela que fora minha religião por 42 anos com a certeza de que amo muito a Jeová e a seu filho, nosso Senhor Jesus Cristo, o único caminho que conduz à salvação sem necessidade de outro “mediador” ou “representante terrestre” do tipo que a organização se diz. (1Tim. 2:5-7)
Sou feliz e tento eliminar de minha vida, aquele ser superior que eu aprendi a pensar que era como Testemunha de Jeová. Quanto engano! Pensava ser uma daquelas pessoas possuidoras da única “verdade” de Deus, pois tinha certeza que estava na única organização do próprio Deus, empunhando sempre uma Bíblia singular que trazia o nome pessoal Dele.
Agora todo ser humano é meu próximo e não apenas os “adoradores de Jeová”.
Cid e William, estou lendo o livro, “A Verdade Sobre as Testemunhas de Jeová”. Espero ainda ter o prazer de ler o segundo livro do irmão Franz, “Em Busca da Liberdade Cristã”. Tudo que chegou às minhas mãos foi por Jeová e Jesus Cristo, pois nunca deixei de pedir em oração que eles me mostrassem a verdade dos fatos. Eles me ouviram.
Cid e William, obrigada por este site que já abriu os olhos e mentes de muitas Testemunhas de Jeová que queriam nada menos que… respostas.
Abraços,
Haideê Blitzkow
- Carta de Dissociação de Haideê (a original foi registrada em cartório e pode ser vista em PDF. Caso o leitor tenha o programa Acrobat Reader, clique abaixo):
Curitiba, 11 de Agosto de 2003
Ao Corpo de Anciãos da Congregação Parque Iguatu
Venho por meio desta solicitar que seja excluído o meu nome do rol de membros dessa congregação, pois é do meu interesse dissociar-me da Sociedade Torre de Vigia.
Deixo claro que estou deixando única e exclusivamente a Sociedade Torre de Vigia e não a Jeová, pois Jeová é o único Deus verdadeiro, originador do arranjo do resgate para a salvação da humanidade através do sacrifício de Jesus Cristo, a quem reconheço como meu único Salvador. Aceito a Bíblia como a palavra de Jeová e espero o cumprimento das profecias nela contidas.
O que não aceito mais são as interpretações humanas feitas pela Sociedade Torre de Vigia das profecias, pois após cuidadosa pesquisa reconheço que se cumpre na Sociedade Torre de Vigia Deuteronômios 18: 22, “Quando o profeta falar em nome de Jeová e a palavra não suceder nem se cumprir, esta é a palavra que Jeová não falou. O profeta proferiu-a presunçosamente. Não deves ficar amedrontado por causa dele”.
Sendo o que se apresenta para o momento, subscrevo-me orando pela misericórdia de Jeová a todos nós.
Atenciosamente,
Haideê F. J. Blitzkow
- Meus comentários (Cid):
Iguais à minha amiga Haideê Blitzkow, muitas pessoas provam claramente que o cristianismo “explicado” e interpretado por certas instituições religiosas raramente é vivido do modo simples em que está apresentado na Bíblia. O cristianismo da Bíblia, em mais de dois mil anos de sua história, tem sido atropelado por regras humanas, sofrendo alterações em prol dos interesses de organizações religiosas como a das Testemunhas de Jeová. Nos últimos anos, porém, centenas de Testemunhas estão acordando para o fato de que o maior desafio do cristianismo bíblico é o constante confronto dele com os padrões extremistas e mirabolantes de sua organização que presunçosamente se diz “guiada pelo espírito santo de Deus”, se auto-indicando como “canal de comunicação de Deus com os homens”, por meio de um Corpo Governante nos EUA.
Muitos movimentos religiosos convidam as pessoas a usufruir “ricas bênçãos espirituais” em suas células de adoração, mas os preços muitas vezes são altos. Pessoas que atendem a tal convite, espiritualmente carentes e em busca de seu Criador, imaginam que o Deus de certa religião é o mesmo da Bíblia, tendo em vista o estridente apelo de que as Escrituras Sagradas são corretamente entendidas apenas ali. Nessa busca sincera de Deus, tais pessoas aderem a códigos de crenças humanas, espertamente elaborados para escravizá-las a sistemas eclesiásticos rígidos, exclusivistas, intolerantes e em muitos casos, perigosos. Dedicam toda uma vida a um sistema, comprometendo-se com centenas de normas de homens ao ponto de agirem como as Testemunhas que são obrigadas a “fazer relatórios de horas de pregação”, “colocar literatura”, “sair ao campo em base semanal”, “assistir e participar de todas as reuniões cristãs”, etc. Não seguir tal rotina traz problemas que vão de um “gelo” por parte dos outros membros “espiritualmente fortes” até o afastamento total de todos.
O cristianismo, quando restrito unicamente à pessoa de Cristo, não obedece à cartilha de qualquer organização nesse modelo da Torre de Vigia. Esse “cristianismo” institucionalizado, i.e., adaptado à religião das Testemunhas de Jeová, é hoje um regime de normas extras, conforme podemos inferir da experiência de Haideê Blitzkow e de outras seções dessa página. As proibições que a organização das Testemunhas impõem a seus membros, algumas descritas na experiência de Haideê, vão “além das Escrituras”. (1 Cor. 4:6) Por motivos assim, Haideê e dezenas de outras Testemunhas que nos procuram (ou a outros que podem dar informações a cerca dos erros e contradições da Torre de Vigia), quando esclarecidas quanto à ilegitimidade da autoridade do Corpo Governante (e de seu cristianismo adaptado por ele), saem de lá com uma certeza maior do que quando aceitaram o pacote de doutrinas da suposta “verdade”.
Exatamente por causa das alegações altissonantes da organização, dúvidas como as de Haideê surgem cada vez mais na comunidade TJ. Ora, se a organização fosse o que alega ser, não haveria ensinos sem fundamento e inconsistentes como o da “entronização de Cristo em 1914 de modo invisível, proibições estranhas e ensinos não-bíblicos descritos em várias seções dessa HP, como por exemplo, mudanças do tipo “Geração de 1914” que insistentemente, por décadas, foi enfatizada como aquela que “não passaria”. Como poderia “o espírito santo de Deus” ter “orientado” tão mal esse Corpo Governante que seria supostamente o próprio “canal de comunicação” do Criador com suas criaturas?
- Raymond Franz, em seu livro “Em Busca da Liberdade Cristã”, capítulo 18, dentre outras coisas, faz considerações pertinentes aos temas aqui abordados. Eis alguns trechos desse capítulo:
Servir a Deus ― o que está envolvido
…Se lermos o relato que acompanha estas palavras, bem como o resto das Escrituras Cristãs, veremos que não apresentam o cristianismo como forma de vida e adoração voltada para instituições ou edifícios; não é definido por credos ou códigos de lei. Tampouco se centraliza em atividades específicas vistas de modo especial e distinto como devotas e religiosas, que tenham, aos olhos de Deus, maior mérito que outras atividades que não são assim classificadas. É um modo de vida que abrange toda a vida e todas as atividades da vida. Lendo as palavras do Filho de Deus e os escritos de seus apóstolos, constatamos que não é uma questão de pertencer a um sistema religioso, praticando certos atos religiosos em certas ocasiões e certos locais, mas aquilo que somos como pessoas em nossa vida diária é que mostra se somos seus seguidores ou não. Só por isto ser verdade é que seu apóstolo pôde dizer: “E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome [como representante do, Living Bible] do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai.” Ele pôde mesmo dizer àque-les que então eram escravos: “Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor, e não para homens, cientes de que recebereis do Senhor a recompensa da herança.” (Colossenses 3:17, 23, 24, ARA)
Creio que por não perceberem isto é que muitos que se desligaram de uma organização religiosa autoritária, legalista e voltada para obras (e destas há várias) sentem-se muitas vezes perplexos quanto a como encarar a questão de servir a Deus em sua nova condição de liberdade. Em 1976, como membro do Corpo Governante das Testemunhas de Jeová, fui designado para elaborar matéria sobre o assunto do “serviço sagrado”. Os artigos resultantes foram intitulados “Apreço do Tesouro do Serviço Sagrado” e “Preste Serviço Sagrado Noite e Dia” (publicado no número de 1º de junho de 1977 de A Sentinela, páginas 332 a 342). Em grande parte, a matéria analisava o significado do termo grego latreuo, traduzido como “prestar serviço sagrado” na Tradução do Novo Mundo (geralmente “servir” ou “adorar” em outras traduções). Ambos os artigos apresentavam evidência bíblica de que servir a Deus não é algo restrito a determinadas atividades, tais como pregar ou assistir a reuniões, algo que se deve praticar em certas ocasiões específicas especiais, em certos locais ou de maneiras especiais, mas é todo-abrangente, algo para se viver, um serviço que ocupa toda a vida. Mostravam que as Escrituras falam de “sacrifícios a Deus” que incluem não só o “sacrifício de lábios que fazem declaração pública do seu nome”, mas também “fazer o bem e partilhar as coisas com outros, porque Deus se agrada bem de tais sacrifícios.” (Hebreus 13:15, 16; pode-se notar que antes, no versículo 10, o autor usa o termo latreuo quando considera o ‘servir’ prestado por se oferecer sacrifícios e oferendas no tabernáculo ou no templo, e daí contrasta isto com os sacrifícios do tipo espiritual que os cristãos oferecem num “altar” diferente).
Este parágrafo é típico (A Sentinela de 1º de junho de 1977, p. 338):
9 O “serviço sagrado”, portanto, não é algo que ocupa apenas parte de nossa vida. Não se limita apenas a uma só atividade ou a certo número de atividades, mas abrange todo aspecto de nossa vida diária. Em suma, significa ‘fazer todas as coisas como para Jeová, quer comer, quer beber ou fazer qualquer outra coisa’. (1 Cor. 10:31) Mostrando quão inclusivo esse serviço deve ser, o apóstolo diz em Romanos 12:1, 2: “Eu vos suplico, irmãos, pelas compaixões de Deus, que apresenteis os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e aceitável a Deus, um serviço sagrado com a vossa faculdade de raciocínio. E cessai de ser modelados segundo este sistema de coisas.”
Em harmonia com isto, após afirmar que “há muitas coisas envolvidas, mas nosso objetivo, nosso alvo e nossa motivação de coração são fatores-chaves para sabermos se o que fazemos realmente é ‘serviço sagrado’ou não”, o segundo artigo de A Sentinela mostrou que grande parte do serviço sagrado dos pais envolvia seus filhos, “uma herança da parte de Jeová” e “santos” para Ele. (Salmo 127:3; 1 Coríntios 7:14) O cuidado dos pais com os filhos era um dos aspectos “noite e dia” do seu serviço sagrado. Os cônjuges prestam serviço sagrado mantendo o casamento honroso, na relação entre ambos, trabalhando para o êxito de seu casamento (Confira Efésios 5:21-29). Uma dona-de-casa pode trabalhar no lar como “para o Senhor” e contribuir para que outros apreciem as boas novas pela qualidade de sua vida doméstica, sua hospitalidade, sua bondade e por ser boa vizinha. (Tito 2:4, 5; confira Provérbios 31:10-31; Atos 9:36-41) Os homens podem promover e trazer crédito às boas novas pelo modo como realizam seu trabalho diário, pondo o coração no que fazem “como para o Senhor e não para homens”. (Colossenses 3:17, 23, ARA) Quando se faz algo com esse espírito, como pode isso ser outra coisa senão servir a Deus?
Muitos acharam esta informação revigorante, dizendo que ela deu maior sentido às suas vidas e os fez sentir que há outras coisas que contam, além do “serviço de campo” e da assistência às reuniões. Porém, nem todos gostaram. Após algum tempo, alguns superintendentes viajantes, cuja tarefa principal era (e é) incentivar o “serviço de campo”, queixaram-se ao Departamento de Serviço de que a perspectiva apresentada prejudicava a promoção desta atividade. Colocar outros aspectos da vida em pé de igualdade com o “serviço de campo” diminuía a importância do trabalho deles e tirava-lhes parte da força quando pediam ‘mais horas no campo’. Pessoalmente, não soube de outros que expressaram objeções.
Em 1980, pouco após minha renúncia ao Corpo Governante, outra série de artigos veio na Sentinela (em inglês) de 15 de agosto, destinada a reaplicar a expressão “serviço sagrado” apenas a coisas como serviço de campo e assistência às reuniões. Estes artigos frisavam o fato, e na verdade nele baseavam muito da argumentação, de que para os judeus da época pré-cristã “o serviço sagrado sempre se relacionava com a adoração em obediência ao pacto da Lei” e “não se referia às coisas quotidianas do povo.”(A Sentinela, 15 de fevereiro de 1981, páginas 22 e 24) Argumentava que, já que outros, além das Testemunhas de Jeová, comem, trabalham, limpam suas casas e obedecem às autoridades, como era possível que fazer essas coisas fosse considerado prestação deste tipo de serviço a Deus? Não, só atividades “especiais”, “fora do comum”, tais como publicar a mensagem das publicações da Torre de Vigia e assistir às reuniões em que elas são estudadas, mereciam ser consideradas como serviço sagrado a Deus. Desprezava qualquer ideia de que a motivação pudesse fazer alguma diferença e conferir valor espiritual a ações de natureza comum de modo a transformá-las em serviço sagrado a Deus, fazendo dessas atividades uma expressão de nossa adoração a Deus.
A seção “Perguntas dos Leitores” da mesma edição apoiou-se nesta argumentação da comparação com o serviço dos israelitas sob o antigo pacto da Lei. Buscou também descartar a ideia de que quando um homem trabalha, cuida da família e do lar, ou de atividades similares, ele esteja prestando um “serviço sagrado” a Deus. Não, tem de ser “algo fora do comum”. De fato, o artigo trazia uma lista autorizada deste tipo de atividades. As principais eram: pregação (“serviço de campo”), assistência às reuniões, estudo familiar e consideração do texto diário da Torre de Vigia, serviço de pioneiro e missionário, serviço de Betel (na sede mundial ou numa filial), serviço de superintendente viajante, ancião ou servo ministerial. Assim, por definição, se um pai dirige um estudo bíblico formal com a esposa e os filhos (e isto sempre é feito com o uso de uma publicação da Sociedade Torre de Vigia), isto é serviço sagrado, serviço a Deus (pode também incluir a hora gasta em seu “relatório de serviço de campo”). Se o pai gasta tempo informalmente em simplesmente conversar com o filho sobre sua vida e atividades diárias ― examinar o que pensa, deixar que expresse suas idéias, sentimentos e interesses, ajudá-lo em seus problemas escolares ou a desenvolver uma atitude saudável para com a vida, ou ensinar-lhe habilidades que o preparem para a vida adulta como cristão responsável ― isto não é considerado parte do “serviço sagrado” a Deus. Este conceito rígido é, sem dúvida, uma das principais razões do inegável fraco desempenho das Testemunhas de Jeová quanto a fazer os jovens permanecerem na organização depois de atingirem à maioridade. Recordo que quando fui enviado a Belize, país da América Central, nos anos 70, um dos representantes da organização ali me informou, por sua iniciativa, que de todos os rapazes que tinham sido criados como Testemunhas naquele país, nenhum tinha até então continuado na organização. Embora este seja um caso extremo, o fato é que em todos os países o número de jovens que deixam a organização quando atingem a idade adulta é desproporcionalmente elevado.
O efeito destes decretos organizacionais sobre a perspectiva mental das Testemunhas ― definindo ‘o que é e o que não é serviço sagrado a Deus’ ― é ilustrado pelo que ocorreu quando os artigos acima mencionados foram estudados no Salão do Reino em Gadsden, Alabama. No final do estudo, o ancião que dirigia o estudo de A Sentinela, Tim Gregerson, perguntou à assistência: “Suponhamos que haja na congregação uma irmã cujo marido morreu e esteja passando por um período difícil, e um de nós vai ajudá-la com seus problemas. Seria isso ‘serviço sagrado’?” No início não houve resposta, mas finalmente uma pessoa se ofereceu para responder, e disse: “Não, isso não seria serviço sagrado.” Tim então destacou que os artigos tinham enfatizado o aspecto religioso da “adoração” envolvido no “serviço sagrado” e aí recordou à assistência as palavras do discípulo Tiago:
A forma de adoração que é pura e imaculada do ponto de vista de nosso Deus e Pai é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas na sua tribulação, e manter-se sem mancha do mundo. (Tiago 1:27, NM)
Ele afirmou então que Tiago descreve especificamente o cuidar desta irmã viúva como “adoração”, de modo que isto certamente era “serviço sagrado”. (Tim Gregerson, na época, era “pioneiro” havia alguns anos e continuou ainda por algum tempo. Logo, não era alguém “falto de zelo para com o serviço sagrado”) Estando presente, chamei também atenção para a referência a “serviço sagrado” no capítulo 13 de Hebreus, que inclui fazer o bem e mostrar bondade para com outros como “sacrifícios” que o cristão oferece num altar espiritual. Típica, porém, do efeito desta matéria sobre muitas Testemunhas, foi a declaração de outro ancião, Dan Gregerson, tio de Tim. Após ouvir a evidência bíblica já mencionada, ele mostrou-se insatisfeito e disse: “Gostaria de chamar a atenção dos irmãos para a “Pergunta dos Leitores” no final desta revista, e ali a Sentinela mostra exatamente o que é realmente ‘serviço sagrado’”. Não refutou biblicamente o que fora dito, mas para ele o fator decisivo era claramente aquilo que A Sentinela dizia.
De fato, embora não a colocasse na lista de ações definidas como “serviço sagrado”, a “Pergunta dos Leitores fez breve menção da declaração de Hebreus sobre ‘fazer o bem e partilhar coisas com outros’, dizendo que isso incluía prestar assistência quando “nossos irmãos [co-Testemunhas] estão padecendo necessidades, sofrem calamidade ou estão em apuros.” (Hebreus 13:10-16) Mas, assim como A Sentinela limitava arbitrariamente a oferta de “sacrifício de louvor” a Deus à “pregação pública”, também restringia-se ‘fazer o bem’ e ‘partilhar coisas boas’ às limitações acima, como se aplicando apenas ao socorro prestado às co-Testemunhas, não a outros.
Todavia, a própria Bíblia não impõe tais limites ao significado da expressão ampla “fazer o bem”. Tampouco o faz com relação à referência igualmente não específica sobre “partilhar com outros”. (Embora tenham pelo menos mencionado o cuidado com as co-Testemunhas que “padecem necessidade” neste artigo sobre “serviço sagrado” e embora artigos ocasionais que falam sobre mostrar interesse e preocupação com idosos e necessitados apareçam na revista A Sentinela, já vimos nos capítulos 6, 10 e 16 desse livro que na prática isto raramente recebe alguma atenção notável. Embora não seja o caso de todas, é uma verdade simples que se tiver de escolher entre gastar tempo no “serviço de campo” ou em visitar estes idosos, doentes ou necessitados, a maioria das Testemunhas e a maioria dos anciãos sentir-se-ão pressionados a optar pelo “serviço de campo”, especialmente se suas “horas” estiverem um pouco baixas. Tais visitas podem até ser incluídas como “serviço sagrado”, mas não é um serviço que possa ser incluído no relatório. Isto não devia fazer diferença, mas claramente faz, como diz francamente a carta de Karl Adams para Nathan Knorr)
De novo, o efeito desta definição “autorizada” que limita a expressão apostólica apenas à ajuda especial ou emergencial aos de sua própria religião, contribui para que muitas Testemunhas manifestem uma atitude muito indiferente, às vezes mesmo fria e distante, para com vizinhos e pessoas de sua comunidade, atitude bem semelhante à do sacerdote e do levita na parábola que Jesus deu em resposta à pergunta: “Quem é o meu próximo?” Aquelas pessoas religiosas, ativas no “serviço sagrado”, tinham coisas mais importantes a fazer que se preocupar com um próximo em dificuldades, e foi um samaritano, um homem de uma religião diferente, que veio em socorro da pessoa em dificuldade, que mostrou ser o verdadeiro próximo. (Lucas 10:29-37; confira 17:15-19) A atitude estrita anunciada não se harmoniza com o ensino de Jesus:
Sede filhos de vosso Pai celestial, que faz seu sol levantar-se tanto sobre os maus como sobre os bons, e envia a chuva sobre os honestos e os desonestos. Se amais apenas os que vos amam, que recompensa podeis esperar? Certamente que os cobradores de impostos fazem isso também. E se cumprimentais apenas os vossos irmãos, que há nisso de extraordinário? Até os pagãos fazem isso. Não deve haver limites à vossa bondade, assim como a bondade de vosso Pai celestial não conhece medidas. (Mateus 5:45-48, NEB)
A matéria da Sentinela de 1981 empenha-se em pôr o serviço a Deus numa categoria separada das atividades da vida. Tenta fazer diferença entre “serviço” e “serviço sagrado” a Deus, restringindo o último a ações de natureza bem distintiva e incomum. É verdade que o termo específico em questão (latreuo) só é usado nas Escrituras com referência a “serviço a Deus (ou a um deus ou deuses”- Veja o Theological Dictionary of the New Testament [Edição Resumida], páginas 503, 504) Para os pagãos, tal serviço envolvia coisas feitas nos templos, em edifícios especiais, rituais especiais e ofertas especiais a seus deuses. Para o povo judeu, aplicava-se geralmente a atos realizados em cumprimento do pacto da Lei, incluindo cerimônias, sacrifícios, festividades sagradas e serviço sacerdotal. Tudo isto é evidente. A coisa notável no cristianismo, porém, é exatamente o fato de que o serviço a Deus é muito mais amplo, muito mais abrangente, e não se limita a atividades realizadas em certos edifícios ou de formas prescritas, que afetam apenas parte da vida da pessoa.
O autor dos artigos de A Sentinela de 1981 está certo quando diz que, “para os judeus, o serviço sagrado sempre se relacionava com a adoração em obediência ao pacto da Lei.” Está errado quando afirma que isto descarta sua aplicação a “esses atos básicos e essenciais da vida humana.” Enquanto a “obediência ao pacto da Lei” de fato incluía algumas das atividades “fora do comum”, distintas das atividades quotidianas, a obediência àquele pacto da Lei também incluía muitas coisas que eram parte da vida diária dos israelitas. O pacto da Lei não prescrevia meramente sacrifícios periódicos de animais, jejuns, festividades sagradas e cerimônias, mas requeria também a prática diária de imparcialidade, justiça, retidão, honestidade e compaixão nos tratos quotidianos entre eles. Suas leis requeriam a bondade não só para com co-israelitas, mas também para com escravos e residentes estrangeiros, e até a consideração para com animais e pássaros. (Levítico 19:9, 10, 13-15, 17, 18, 32-37; 23:22; 25:35-43; Deuteronômio 15:7-11; 16:18-20; 22:1-4, 6-8; 24:10-15, 17-22; 25:4) Todavia, os israelitas comumente minimizavam estes fatores em favor dos aspectos mais cerimoniais e distintamente religiosos, orgulhando-se deles como prova de sua devoção a Deus, em vez daqueles ligados aos aspectos diários da vida. O artigo da Sentinela segue linha semelhante, mostra o mesmo ponto de vista equivocado.
Diante do fato de que os apóstolos de Jesus Cristo de fato falaram de “atos básicos e essenciais da vida humana” como “feitos para com o Senhor” e “feitos para a glória de Deus“, o escritor de A Sentinela se apóia numa distinção errônea entre serviço a Deus e serviço sagrado a Deus. Como pode o serviço a Deus ser outra coisa senão sagrado? É como se Deus atribuísse um prêmio, um valor maior, aos atos especiais em vez dos atos diários, ao incomum em vez do costumeiro. Jeová, ao repreender Israel, mostrou claramente que não é assim. Mostrou que a prática diária da misericórdia, compaixão e justiça era sempre de maior valor para ele que os atos especiais que os israelitas achavam distintamente “sagrados”. Conforme Ele disse:
Pois, agrado-me da benevolência e não do sacrifício; e do conhecimento de Deus antes do que de holocaustos. (Oséias 6:6; confira Mateus 12:7)
Quanto a este “conhecimento de Deus”, através de seu profeta Jeremias, Jeová pergunta ao filho do rei Josias:
Quanto a teu pai, acaso ele não comeu e bebeu, e executou o juízo e a justiça? Neste caso ia-lhe bem. Ele pleiteou a demanda judicial do atribulado e do pobre. Neste caso ia bem. “Não era este o caso de conhecer-me?” é a pronunciação de Jeová. (Jeremias 22:15, 16)
Assim como as pessoas clamavam em Pentecostes, “Irmãos, o que havemos de fazer?”, também os israelitas perguntavam como prestar serviço aceitável a Deus. Por meio de seu profeta Miquéias, Jeová apresentou a pergunta deles e resumiu a questão deste modo:
Com que eu poderia comparecer diante do SENHOR [Jeová] e curvar-me perante o Deus exaltado? Deveria oferecer holocaustos de bezerros de um ano? Ficaria o SENHOR [Jeová] satisfeito com milhares de carneiros, com dez mil ribeiros de azeite? Devo oferecer o meu filho mais velho por causa da minha transgressão, o fruto do meu corpo por causa do pecado que eu cometi?
Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o SENHOR [Jeová] exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus. (Miquéias 6:6-8, NVI)
O redator da Sentinela minimiza a importância da motivação como algo capaz de converter atos corriqueiros em serviço sagrado a Deus. Pode-se, todavia, ver a importância da motivação mesmo naqueles tempos pré-cristãos, do pacto da Lei, pois foi precisamente a falta da motivação correta de coração (evidenciada por seus tratos injustos e desamorosos com outros na sua vida diária) que fez Deus “detestar” os próprios atos de “serviço sagrado” ― sacrifícios, observância de dias santos, festividades e jejuns ― realizados pela maioria da nação judaica. (Isaías 1:11-17; Amós 5:11-15, 21-24) Isto ocorreu apesar de aqueles serem atos especiais, “fora do comum”, relacionados com a “adoração em obediência ao pacto da Lei”, como diz o artigo de A Sentinela. Jeová deixou claro que sem a motivação correta na vida diária e no curso diário das atividades, todos os sacrifícios, festividades e outros serviços perdiam todo o sentido ou valor.
Mais adiante, Raymond Franz escreve ainda nesse capítulo:
…Em parte alguma o apóstolo alista “serviço de campo”, assistir a reuniões, servir numa sede religiosa institucional ou qualquer uma de tais atividades como aquela que define que alguém está oferecendo este “sacrifício vivo”. O conceito de serviço a Deus, de adoração, em que insiste a organização Torre de Vigia, na realidade nada mais é que a regressão a um ponto de vista pré-cristão, não meramente ao tempo do pacto da Lei, mas a um conceito nocivo típico de uma atitude voltada para a Lei, voltada para obras. Este diminui o papel do coração ― e toda a sua espontaneidade ― pela ênfase às formas e funções prescritas e regulamentadas como o critério para determinar o que se classifica ou não como “serviço a Deus”. Retrocede ao tempo anterior à introdução da “liberdade pela qual Cristo nos libertou”. Entre as religiões atuais, a organização Torre de Vigia não é a única a fazer isso.
Foi um conceito similar, distorcido e anacrônico, do que envolvia o serviço cristão a Deus que, nos séculos seguintes ao período apostólico, levou à ideia de que participar na “adoração” significava “ir à igreja”, e isso elevou o que se fazia “na igreja” a um nível espiritual superior ao que o crente podia fazer fora da “igreja”. Em conseqüência, os edifícios onde se realizavam os “serviços da igreja”, assumiram um caráter sagrado especial. Isso gerou o conceito de que o homem que era sacerdote ou ministro vivia uma vida espiritual de nível mais elevado e maior mérito espiritual do que a alcançada pelo homem comum, tal como o pai de família que por meio de seu trabalho mantinha a família. O sacerdote ou ministro era proeminentemente “um homem de Deus”. Os outros eram do laikos (que significa “do laos ou povo“), e assim criou-se a divisão clero-leigos. Este mesmo conceito eventualmente exaltou o celibato, praticado por sacerdotes, monges e freiras, como condição espiritual superior, e “indiretamente depreciou o casamento… como uma condição imperfeita, de segunda classe.” Embora a Reforma corrigisse algumas das distorções neste respeito, muito disso ainda permanece.(Estas últimas palavras citadas são de Steven Ozment em When Fathers Ruled―Family Life in Reformation Europe [London: Harvard University Press, 1983], página 10. Pode-se mencionar aqui que durante muitas décadas a sede mundial da Torre de Vigia teve um caráter monástico, sendo a vasta maioria do pessoal formada por homens solteiros, e a conservação do celibato era requisito para continuar ali [ou nos escritórios de filial]. A mesma exigência aplicava-se a todas as pessoas solteiras formadas na Escola de Gileade)
E mais adiante ainda no capítulo 18…
É necessária uma estrutura de autoridade?
Como vieram a existir congregações cristãs no primeiro século? Nada há que indique que as pessoas eram “organizadas” numa congregação. Como se formava uma congregação? Formava-se simplesmente em resultado de as pessoas se congregarem, fazendo-o em razão da fé mútua e do interesse mútuo em edificar uns aos outros na fé. Que dizer então dos diferentes termos encontrados nas Escrituras Cristãs, tais como ancião, superintendente, diácono, instrutor, pastor?
Neste respeito, as circunstâncias do primeiro século podem servir de modelo. Este não pode, contudo, ser um modelo preciso. A razão é que nem todas as circunstâncias permanecem hoje as mesmas.
Lemos que os da casa ou família de Deus foram “edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular.” Embora não esteja presente na terra, Cristo Jesus permanece conosco, “no qual todo edifício, bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor.” (Efésios 2:19, 20, ARA) Mas esse não é o caso dos apóstolos. Eles já não estão aqui. O próprio fato de que serviam de ‘fundamento’ ou ‘alicerce’ implica em que suas funções se ajustavam aos estágios iniciais do cristianismo. Os “profetas” citados podem ser profetas cristãos, em vez dos profetas pré-cristãos das Escrituras Hebraicas. (Confira Atos 15:32; 21:8-10; 1 Coríntios 12:10, 28; Efésios 4:11) Se for assim, o fato de que os profetas são mencionados do mesmo modo que os apóstolos indicaria um papel inicial similar no cristianismo, papel que, como o dos apóstolos, estava destinado a acabar. (V. The New International Dictionary of New Testament Theology, Vol. III, página 84)
Como muitas outras religiões, as Testemunhas de Jeová crêem que não existe sucessão apostólica além do primeiro século. Todavia, como vimos, mesmo não assumindo o título de apóstolo, nem falando que ocupam o cargo de apóstolo, homens de diferentes religiões tentam revestir-se da autoridade apostólica. O Corpo Governante das Testemunhas de Jeová assume uma autoridade igual a dos apóstolos, chegando às vezes a ir além da dos apóstolos. (Veja os capítulos 4, 5 e 12 desse livro) A liderança de várias outras religiões faz o mesmo. Só podemos ser “apostólicos” hoje no sentido de nos apegarmos ao ensino apostólico. Além de Cristo Jesus, do Espírito santo e da Palavra de Deus, aqueles poucos homens eram, em virtude de sua designação divina, a única fonte externa de autoridade que qualquer grupo congregado de cristãos podia corretamente reconhecer. Mas sua designação e autoridade apostólicas divinamente recebidas eram exclusivas. Não existem hoje. Isso tem um efeito considerável sobre nosso entendimento de como certas circunstâncias do etapa inicial do cristianismo podem diferir da nossa própria época
Um arranjo dinâmico — não estático
Outro fator de peso para nossa compreensão é o princípio estabelecido em Efésios 4:11-16. Este afirma que os serviços prestados por pessoas nas congregações, inclusive os providos por apóstolos, profetas, evan-gelistas, pastores e instrutores, visavam todos levar as pessoas a um objetivo. Como vimos, o objetivo era, não que permanecessem como crianças, precisando que outros os instruíssem e pastoreassem, mas que “crescessem em tudo naquele que é o cabeça, Cristo.” (Efésios 4:11-16, ARA) O passar do tempo diminuiria a necessidade de outros lhes prestarem tais serviços e aumentaria sua própria capacidade de agir como pessoas adultas, maduras, que não estivessem constantemente dependentes de outros. Na carta aos Hebreus, o autor reprova aqueles a quem escreve, dizendo: “Depois de tanto tempo, vocês já deviam ser mestres.” (Hebreus 5:12-14, BLH)
Todo sistema religioso que perpetua a dependência de seus membros aos serviços de certos homens trabalha contra o objetivo estabelecido. Não se trata de esperar que cada pessoa se desenvolva para tornar-se igual a todas as outras, tendo as mesmas capacidades ou “dons” em igual medida. Mas todos deviam tornar-se cristãos “adultos”, maduros em entendimento e capacidade de levar uma vida cristã, de tomar decisões maduras por sua conta, não de outros. Todos devem ser membros ativos do “corpo de Cristo”, não apenas recebendo o serviço de outros membros, mas cada um contribuindo, por si mesmo, com serviço valioso e proveitoso. Esse é o quadro que nos transmitem as Escrituras Cristãs. (1 Coríntios 12:4-25; 1 Pedro 4:10, 11)
Em vez de continuar na constante necessidade do serviço de pastoreio de outros, têm de se fortalecer para que eles mesmos sejam capazes de ajudar outros. Não é aos encarregados da igreja ou líderes organizacionais, mas aos cristãos da Galácia, em geral, que Paulo escreve:
Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós que sois espirituais, corrigi-o, com o espírito de brandura; e guarda-te para que não sejas também tentado. Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo. (Gálatas 6:1, 2, ARA)
Explicando esta exortação, diz um comentário:
É bem impressionante que ‘amar uns aos outros’, ‘levar as cargas uns dos outros’ e ‘cumprir a lei’ sejam três expressões equivalentes. Mostra que amar uns aos outros como Cristo nos amou pode nos levar não a algum feito heróico e espetacular de auto-sacrifício, mas ao ministério muito mais mundano e não-espetacular de levar cargas. Quando vemos uma mulher, uma criança ou uma pessoa idosa levando uma caixa pesada, não nos oferecemos a levá-la por ela? Assim também, quando vemos alguém com uma carga pesada no coração ou na mente devemos estar prontos a acompanhá-lo e partilhar sua carga. De modo similar, temos de ser humildes o bastante para deixar que outros partilhem a nossa. Levar cargas é um grande ministério. É algo que todo cristão pode e deve fazer. É a conseqüência natural de andar pelo Espírito. Cumpre a lei do Cristo. (Only One Way, The Message of Galatians, de John R. W. Stott, páginas 158, 159)
Mais adiante…
Uma comunidade internacional
Os cristãos do primeiro século se reuniam em grupos relativamente pequenos nos lares, e, uma vez passado Pentecostes, em parte alguma aparecem promovendo grandes assembleias envolvendo grandes números de pessoas vindas de diferentes regiões. Todos, no entanto, faziam parte de uma comunidade, agrupamento ou congregação maior, mundial, em virtude de estarem todos espiritualmente reunidos ao Filho de Deus como seu Cabeça. Como já mostramos, esta relação ampliada não se expressava por estarem ligados ou sujeitos a Jerusalém como centro de administração religiosa, pois eles olhavam, em vez disso, para uma fonte celestial como seu centro de orientação. Esta unidade se expressava no seu amor a todos os outros com quem partilhavam uma fé em comum, vistos ou não-vistos, pessoalmente conhecidos ou não, pois esse amor é “o perfeito vínculo de união”. (Colossenses 3:12-14) Demonstravam sua relação unida por meio da hospitalidade, estendendo-a aos que antes eram estranhos, partilhando suas coisas boas uns com os outros, por vir em socorro dos necessitados onde eles estivessem, partilhando cartas e outras notícias encorajadoras com os que se reuniam em outros lugares, orando por eles, sentindo com eles suas provações e dificuldades, exatamente como os membros de uma família fariam naturalmente uns pelos outros. (Mateus 25:34-40; Romanos 12:10, 13, 15; 2 Coríntios 7:5-7, 13; Filipenses 2:19, 25-29; Colossenses 4:16; 1 Tessalonicenses 5:14, 15; Hebreus 6:10; 10:32-34; 10:1-11) Portanto, faz-se este comentário com respeito à participação de Paulo em tudo isto:
[Ele] buscava edificar relacionamentos duradouros de caráter pessoal em vez de institucional…. Estes grupos cristãos dispersos não expressavam sua unidade por se amoldarem a uma organização jurídica, mas, ao invés, através de uma rede de contato pessoais entre pessoas que se consideravam membros da mesma família cristã. (Paul’s Idea of Community, página 48)
Podemos fazer o mesmo hoje. Temos a liberdade para fazer o mesmo hoje. É correto que desejemos associação. Temos de estar abertos a ela, e não só abertos, mas temos de desejá-la e buscá-la, lutar para mantê-la apesar das imperfeições. No entanto, se prezarmos a liberdade cristã, nunca faremos isto pelo preço de sacrificar a integridade para com a verdade. Lembramos da exortação apostólica: “Vocês foram comprados por alto preço; não se tornem escravos de homens.”(1 Coríntios 7:23, NVI) Não precisamos comprar companheirismo pelo preço de deixar que um sistema religioso nos amarre a seu credo e nos submeta a sua estrutura de autoridade, ou deixar que seus líderes nos façam sentir que devemos ser apoiadores da denominação deles. O vivo interesse, de mente e coração abertos, nas pessoas, a disposição até mesmo de comprometer-se com as pessoas com genuíno interesse e amizade, é uma coisa. Comprometer-se com um sistema é outra.
Na segunda carta a Timóteo, Paulo comparou os adeptos da fé cristã a “uma casa grande”. Essa “casa” está incrivelmente grande em nossa época. Ele descreveu a casa como tendo vasos de tipos opostos, alguns valiosos, e alguns usados apenas para fins ignóbeis. E aconselhou Timóteo a ser criterioso, do mesmo modo como alguém não usaria para comer e beber vasos que eram utilizados para lavar coisas sujas. (2 Timóteo 2:20, 21) Não que ele tivesse de se considerar acima dos outros, ou não quisesse ter contato com eles, nem mostrar interesse por eles nem ajudá-los. Mas ele discerniria o benefício da associação com aqueles cujas qualidades e atitudes fossem saudáveis, proveitosas, genuinamente edificantes.(Compare 2 Timóteo 2:16-26 com 1 Coríntios 15:1, 2, 12, 33, 34) Faremos bem em mostrar tal critério hoje. Em vez de deixar que a pressão para encontrar associações nos faça tomar decisões apressadas, seremos sábios em demonstrar paciência, pesando o efeito que a associação oferecida terá em nossa liberdade cristã, avaliando calmamente seus supostos benefícios, examinando a base do seu atrativo. Pode levar tempo para encontrar companhias que nos edifiquem e sobre as quais possamos ter um efeito edificante ― em liberdade. Mas vale a pena esperar.
Por algum tempo, talvez enfrentemos certo grau de solidão. Os exemplos que Deus nos dá por meio de seus servos como encorajamento à nossa fé são em grande parte de pessoas que também suportaram épocas de solidão. Alguns até “vagueavam pelos desertos, e pelas montanhas, e pelas cavernas, e pelas covas da terra”! Lembrando deles e da recompensa que lhes foi assegurada, podemos alentar-nos, ‘levantar as mãos pendentes, fortalecer os joelhos debilitados e endireitar as veredas para os nossos pés’ em vez de disparar por um caminho de menor resistência.(Hebreus 11:38; 12:1, 12, 13) Se a escolha tem de ser feita, podemos sem temor, por certo período, dispensar as associações humanas na convicção de que jamais estamos sós, que mantemos em todas as épocas a amizade transcendente de Deus e seu Filho. Esta é a única sem a qual não podemos passar, tudo o mais podemos fazer, se for preciso. A fé nos assegura que eles nos levarão com eles, sustentarão, fortalecerão e encorajarão com seu amor. À medida que nossos esforços forem recompensados ao fazermos amizades edificantes com outros, poderemos ver isto como algo extra, acrescentado, nunca algo esssencial.
Creio que essa perspectiva pode resultar, de fato, em encontrarmos, se não maior número de amigos, pelo menos amigos mais dignos, genuínos, cuja amizade não esteja condicionada pelo modo como uma organização ou denominação ou homens de autoridade nos encaram, mas por aquilo que nós mesmos somos. Sei que ganhei pessoalmente, em muitos países, mais de tais amigos sinceros nas duas décadas passadas do que em todos os sessenta anos anteriores.
Qualquer que seja o caso, nossa liberdade se fortalece por sabermos que existem amizades superiores, amizades mais vitais. As pessoas podem nos faltar. Não importa quão sinceramente nós as respeitemos, admiremos ou amemos, elas podem nos faltar. As experiências de Davi e Daquele a quem ele às vezes tipificou, Cristo Jesus, ilustram vigorosamente isto. (Salmo 35:11-15; 38:11; 55:12-14; confira João 1:11; Mateus 26:20,21, 33-49, 56; 2Timóteo 1:15) Mas Deus e seu Filho jamais nos faltarão, jamais nos deixarão “cambaleando”; estarão sempre ali em nosso favor nas épocas de necessidade. (2 Coríntios 4:8,9; Hebreus 13:5,6; Salmo 16:5-8;30:5)