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Atualizado em 06/11/2020
- Um Dilema Causado pelo Legalismo
Quem ler nossos artigos nessa página Testemunha, sabe bem do rigor com que são tratados os desassociados (excomungados) das Testemunhas de Jeová. No último ano que passei na organização tive chance de ver, de bem perto, como o legalismo judicial endurece os corações das pessoas e lhes fecha os olhos para a compaixão, que foi um dos traços mais marcantes do Filho de Deus enquanto esteve na terra.
O caso aconteceu em dezembro de 1997…
Um amigo meu fôra desassociado há algum tempo, e nesta condição ninguém deveria falar com ele. Seu pai (não TJ) veio a falecer, e senti-me movido a comparecer ao funeral e solidarizar-me com sua dor.
Naturalmente, logo suscitou-se em minha mente a dúvida: seria lícito, diante das normas da Sociedade, fazê-lo?
Um outro ancião (também amigo meu), Lauro Barros, telefonou-me, pois estava também desejoso de confortar aquele que, até bem pouco tempo, fôra seu amigo. Queria saber o que eu faria; outro grande amigo meu, Riomar Oliveira, também conversou comigo sobre o assunto. Apontei-lhes um artigo de A Sentinela 15/11/74, pp. 687-689, que ensinava uma abordagem mais misericordiosa com os desassociados, e dava como exemplo (página 687, par. 6) uma desassociada que, após a reunião, estava com um pneu de seu carro vazio. Deveriam os membros da congregação ajudá-la ou não?
- Momento de Decisão
À última pergunta feita no parágrafo acima, a revista respondia que “não fazê-lo seria desnecessariamente rude e desumano” e, no parágrafo 7, acrescentava que “não ter convivência com alguém, ou tratar a tal como ‘homem das nações’, não nos impede de sermos decentes, corteses, atenciosos, amáveis e humanitários.” Na página 689, par. 15, dizia até que seria humanitário dar carona a alguém desassociado a caminho das reuniões.
Raciocinei então que se alguém com um pneu vazio ou que faz um longo percurso a pé era merecedor de que se lhe mostrasse humanitarismo, muito mais o seria fazê-lo no caso do rapaz que perdera um ente querido e que frequentava as reuniões. Assim, tomamos a decisão e fomos ao enterro.
- A Misericórdia Contagia
Chegando lá, percebi que muitas Testemunhas estavam presentes, mas só falavam com a mãe e a irmã do desassociado, que já haviam algumas vezes ido às reuniões, enquanto todos ignoravam o rapaz, embora este chorasse bastante. Quando Lauro e eu (que éramos anciãos) abraçamos e confortamos o desassociado, outros irmãos passaram a fazê-lo também (e demonstravam fazê-lo de coração).
- Conseqüências
Imaginei que pudessem advir conseqüências, e logo estas vieram na pessoa de meu cunhado Ricardo Kataoka, integrante do mesmo corpo de anciãos (dirigentes locais) do qual eu, William Gadêlha, fazia parte.
Ao saber do acontecido, ele questionou o meu procedimento e, ao que parece, não se agradou da abordagem compassiva que fôra dada ao caso. Não pude deixar de recordar, na ocasião, o presidente da sinagoga indignado porque Jesus fizera uma cura no Sábado. (Lucas 13:14)
Mostrei-lhe a informação na revista citada, mas ele achou que esta já era antiga (23 anos) e poderia haver alguma norma (lei) mais recente a respeito do assunto. Kataoka não discerniu, por conta própria, se aquilo era ou não humanitarismo. Escreveu então à Sociedade Torre de Vigia. E com que objetivo? Para que outros seres humanos, iguais a ele, decidissem por ele, se o proceder estava ou não correto.
A resposta enviada confirmou a orientação de A Sentinela 15/11/74, e por fim Kataoka ficou satisfeito.
- Duas Questões Importantes
Duas coisas há que se ressaltar nessa questão:
A primeira é a necessidade de pessoas como meu cunhado, que seguem o Corpo Governante para onde quer que ele vá, de conferirem se uma orientação de 23 anos de existência ainda está correta na atualidade, o que demonstra a natureza mutável e inconstante dos ensinos humanos da organização, enquanto na Bíblia Jeová Deus diz: “Meu próprio conselho ficará de pé.” (Isaías 46:10) No mesmo sentido, Tiago 1:17 diz que com Deus “não há variação da virada da sombra.” Evidentemente essas palavras não se aplicam aos conselhos humanos do Corpo Governante das Testemunhas de Jeová com sede em Warwick, EUA.
O segundo aspecto é o de que o rígido legalismo incutido nos corações de muitos anciãos (não todos) produz exatamente reações como essa, DESAMOROSAS E ANTICRISTÃS, prevalecendo sobre a atitude COMPASSIVA de Jesus, como a demonstrada para com a mulher adúltera de João 8:1-11. Foi também o caso do Bom Samaritano em Lucas 10:29-37. Ao invés, Kataoka costumava citar uma orientação do Corpo Governante, para ser usada quando houvesse dúvidas quanto ao arrependimento de alguém sendo julgado por uma comissão judicativa: “É melhor errar para o lado do rigor do que para o lado da misericórdia.” Onde a Bíblia diz isso?
Vale a pena lembrar que a Sociedade já mudara, de fato, a orientação mais branda daquela revista A Sentinela 15/11/74 que, em sua página 691, parágrafo 21 estabelecia:
“Quanto a membros desassociados da família (não filhos ou filhas menores) que moram fora do lar, cada família terá de decidir até que ponto mantenham associação com tais. Não é algo que os anciãos congregacionais podem decidir por eles.”
O que é “válido” para as Testemunhas de Jeová agora é a instrução dada no número de A Sentinela de 15 de dezembro de 1981, página 25, par. 19, que determina:
“Portanto, cristãos aparentados com um desassociado que não vive na mesma casa devem esforçar-se a evitar a associação desnecessária, mantendo até mesmo os negócios reduzidos ao mínimo.”
- Mais um Triste Exemplo
Segue agora uma experiência contada no livro “Em Busca da Liberdade Cristã” (em inglês), pp. 347, 348, escrito por Raymond Victor Franz, ex-membro do Corpo Governante das Testemunhas de Jeová:
Em 1981, Annette Stuart tinha 71 anos e era TJ já por muito tempo. Sua neta, de 17 anos (batizada aos 14, por insistência da mãe), passou a sentir-se muito pressionada na congregação e disse aos anciãos que não mais iria às reuniões. Os anciãos passaram a considerá-la “dissociada”, e como naquela época a norma da organização não era tão rígida com respeito a parentes desassociados (A Sentinela 15/11/74, p. 691, pars. 21, 22), a família permanecia intacta. Então, naquele número de A Sentinela 15/12/81, pag. 25, 26, par. 18-20 houve uma séria mudança quanto aos parentes desassociados que não moram na mesma casa, dizendo que se devia “evitar a associação desnecessária, mantendo até mesmo os negócios reduzidos ao mínimo.” O parágrafo 20 fala de pessoas ‘desassociadas’ nas congregações do primeiro século e de como eram tratadas.
Na Bíblia, porém, não existe tal palavra e nem se dão detalhes do tratamento dado a tais pessoas pelos seus parentes. Isso fica por conta da imaginação dos membros do Corpo Governante.
O fato é que essa revista causou mudanças na vida de Annette Stuart.
A neta “dissociada” (cujo tratamento era agora igual ao dado a um desassociado) a visitava constantemente, visto que a mãe não queria ter mais nada a ver com ela. Toda a família cortara relações com a jovem, e ela se sentia só e desamparada. Achava-se que, por ela ter deixado a religião das TJ, já não tinha direito à amizade dos familiares, mesmo sendo tão jovem. Annette, porém, continuava a acolher amorosamente sua neta.
Os anciãos, então, a visitaram, pressionando-a Annette para que não recebesse sua neta “dissociada”. O marido de Annette (que nunca fora TJ) já lhes dissera que de modo algum proibiria que ela os visitasse. O que fizeram os anciãos?
Disseram a Annette que deveria retirar-se da sala sempre que a garota estivesse presente, e que não deveria sentar-se à mesma mesa com ela quando ficasse para o jantar em companhia do avô. Annette lhes respondeu que tal atitude seria “desamorosa, desumana e não-cristã”.
Escreve Annette: “Eu lhes disse que não poderia fazer o que pediam. Lembro-me de ter chorado amargamente na ocasião. Eles ficaram lá, frios e sem compaixão.”
Por agir assim, Annette foi então, aos 73 anos, e após 30 anos na organização, desassociada. A família toda, seguindo a orientação de A Sentinela, afastou-se da casa dela. O idoso marido, ao ver seus entes queridos se distanciarem, escreveu à Sociedade, pedindo uma mudança de atitude. Em vão. A atitude local foi apoiada e mantida. O casal e sua neta estavam isolados. E Annette resumiu sua situação deste modo:
“Minha filha, meu genro, netos, bisnetos – não ponho os olhos nestes entes queridos há mais de 4 anos! Meu filho e minha filha moram na mesma cidade em que moramos… e meu pecado foi receber minha neta dissociada em minha casa”.
Os anciãos haviam informado a Annette que “ela serviria de exemplo para outros que achassem que poderiam violar impunemente essa regra [não-bíblica]”.
Esta foi a penalidade de Annette Stuart, sentindo sobre si a pesada mão autoritária de alguns anciãos congregacionais, parecidos ao tipo de pessoas de que Jesus fala em Mateus 20:25.
- Conclusão
Estes são exemplos das orientações contraditórias de uma religião. Valerá a pena ser mais leais a ela do que ao próprio Deus da Bíblia?